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"Quem não tem sua locura?" de Vit Leão e os diálogos entre arte e neurodiversidade.

  • syltriginelli6
  • há 1 dia
  • 9 min de leitura


Estou há oito anos na EBA estudando Artes Visuais. Concluí a habilitação de Gravura e estou finalizando a segunda, Artes Gráficas. Desde 2018, minha jornada artística tem sido intrinsecamente ligada à minha vivência com a neurodiversidade. Entendi que meu ser artista é inseparável do que eu sou, e isso implica trazer referências da minha vida cotidiana para meus trabalhos: os medicamentos que faço uso e seus efeitos, alterações decorrentes do tratamento, os pensamentos intrusivos, os momentos de hiperfoco e de melancolia. Em oito anos, foi a primeira vez que vi um movimento na Escola para abrir o diálogo para aquilo que se chama de “Arte e Loucura”, então eu precisava estar presente: enquanto artista e enquanto "louco". Dizem que, quando se é artista, o trabalho nunca cessa. Todo filme, livro ou lugar é fonte de referência, e, no fim, é como se tudo se conectasse. Tudo é a vivência e experiência (ou experimentação) do artista, e seu trabalho carrega toda essa trajetória. Acredito que, no meu caso, não seja diferente. Eu precisava viver mais aquele dia para presenciar uma roda de conversa e a abertura da exposição “Ao avesso, a torto e a direitos - IV Mostra de arte Insensata”, que nasce dos Centros de Convivência da Rede de Atenção Psicossocial de Belo Horizonte e aconteceu na Escola de Belas Artes da UFMG.


Acho importante trazer todos esses recortes para tornar possível a contextualização para quem sente a necessidade de debater arte, discutir as neurodiversidades e abrir cada vez mais caminhos e portas para aqueles que sempre estiveram à margem ou presos em instituições. Assim como a narrativa que construo em um livro de artista, busco com estas reflexões incentivar aqueles que se interessam pela discussão e crítica de arte a refletir sobre o tema e a criar novos debates, estimulando a produção textual e artística sobre esta e outras temáticas. Arte é diálogo, é linguagem, é meio de comunicação. É possível estimular a interlocução entre arte e neurodiversidade de diversas formas: dando voz a artistas neuroatípicos, criando espaços de arte-educação e arte-terapia, e propondo a transdisciplinaridade, unindo a arte a outros campos do conhecimento para focar na neurodiversidade e suas potencialidades.


No dia 16 de outubro de 2025, em meio a uma semana, e um mês,  extremamente conturbados, onde eu mal conseguia me levantar da cama enquanto lutava contra meus próprios pensamentos, reflexões e ações, obriguei-me a levantar e encarar a realidade mais uma vez. É difícil explicar como essa sensação começa ou onde ela vai parar: é uma inércia, uma vontade de não fazer nada. E por mais que surja o desejo (ou necessidade) de fazer algo, é como se o corpo estivesse impossibilitado de agir, como se a própria existência fosse negada, iniciando-se um diálogo ininterrupto e interno. Esses são os dias mais difíceis, me sinto incapaz de explicar detalhadamente em palavras quais pensamentos passam pela minha cabeça, mas posso afirmar que são os piores. São sentimentos que me assombram desde criança, e me fazem questionar todos os caminhos que já segui, invalidam todas as batalhas que me encaram diariamente. Sei que aqui muitas pessoas conseguem se conectar com esses sentimentos, essas pessoas sabem da intensidade e dos medos que nos acompanham durante toda a nossa vida.


"Quem não tem sua loucura?" de Vit Leão.
"Quem não tem sua loucura?" de Vit Leão.

A caminho da EBA, deparei-me com o outdoor em frente à escola com a obra do artista Vit Leão, intitulada “Quem não tem sua loucura?”. A obra é composta por um fundo branco e a frase “Quem não tem sua loucura?” escrita em roxo. Abaixo da frase, outras palavras estão sobrepostas — “mania, histérica, loucos, loucura, artista louco, delírio, expressão, perda da consciência”, entre outras… — também na cor roxa. Mesmo já conhecendo parte do trabalho de Vit, a obra me tocou de uma forma que acredito não ser necessariamente a proposta pelo artista. Senti muito desconforto. No entanto, quando nos propomos a expor um trabalho, abrimos espaço para diversas interpretações, provenientes de pessoas — e, consequentemente, vivências — diferentes. Ou seja, a obra deixa de ser do artista e se torna do mundo ao ganhar novas interpretações e possibilidades críticas, se desprendendo do conceito inicial proposto pelo artista e se tornando um ser independente.

Ao ver essa obra, questiono-me se "todo mundo tem sua loucura" ou que loucura é essa da qual todos temos uma parte. Penso imediatamente em como essa frase pode abrir espaço para uma romantização do “ser louco” ou do “artista louco”, em vez de validar as experiências neurodivergentes que estão se tornando cada vez mais debatidas — na medicina e psiquiatria constantemente, na arte em pequenos passos ainda estigmatizados, mas principalmente nas redes sociais. A frase é ambígua e acredito que seja uma escolha do artista, pois ele menciona em seu Instagram que 


Ao multiplicar a palavra ‘loucura’ em diferentes sentidos, o outdoor escancara sua polissemia e devolve ao transeunte a pergunta: quem não tem sua loucura? A resposta não está pronta; o que se oferece é a possibilidade de olhar para si e reconhecer que todas as subjetividades carregam brechas, intensidades e modos de existir que escapam da norma. (Post de Vit Leão no instagram)

Essa ambiguidade acaba romantizando uma condição física, química e biológica que por anos tem lutado para conquistar respeito e espaço — mesmo com a ajuda de artistas como o próprio Vit Leão, que trabalha com arte-educação e saúde mental há anos.


Entretanto, do meu ponto de vista, essa frase ambígua, que carrega toda uma história de cárcere, normaliza o termo “loucura”, e cai no estereótipo de que todos temos nossos problemas ou desvios que saem do normativo esperado socialmente. Porém, é inegável que nem todas as pessoas possuem diagnósticos que as assombram por anos e as acompanham pelo resto de suas vidas. No momento em que a vi, refleti sobre frases que poderiam trazer a mesma angústia que senti: “Quem não tem sua deficiência?” “Quem não tem diabetes?” ou até mesmo “Somos todos negros. Somos miscigenados!”. A frase abre brechas para reflexões que invalidam a resistência desses corpos — que com muito esforço — estão na universidade.


Não há razão para ocultar as contradições que o debate científico tem gerado em torno do tema loucura (Pessoti, 1999 in Júnior 2007). “Loucura” é uma palavra que em sua semântica controversa significa “estar fora do lugar” e com o tempo se torna “fora da razão” ou “fora de sí”. É um termo inespecífico, mas existem conceitos diversos na psiquiatria e na saúde mental em si que reforçam a estigmatização do termo, já que cientificamente, historicamente e socialmente está associado como doença psiquiátrica. Enquanto pesquisadora em Artes Visuais e, consequentemente, em neurodiversidade (uma vez que trabalho com essa temática em minhas pesquisas e sou uma artista neuroatípica) acredito que é necessária a disseminação e compreensão deste termo criado em 1998 pela socióloga Judy Singer. É um conceito que reconhece que a mente humana tem uma ampla variedade de formas de funcionar e que essas diferenças não devem ser vistas como problemas, mas sim como variações naturais, biológicas, humanas. O uso do termo “neurodiversidade” traz impactos sociais e políticos que reivindicam o espaço dessas pessoas no mundo, pois é um termo que respeita a pluralidade da forma humana de pensar e existir, que é múltipla.


A história e a cultura trazem referências ora positivas ora negativas sobre a loucura, o que nos leva a refletir sobre a tendenciosidade e a diferenciação entre saúde e doença. Em alguns momentos da história, temos uma ideia romântica da loucura que se associa à genialidade artística e intelectual, enquanto em outros, a figura do louco surge como alguém descontrolado, perigoso e que não deve viver em sociedade, dando origem à psiquiatria enquanto ciência no século XIX. Em geral, o senso comum sobre os artistas ainda transita entre esses dois lugares, romantizando a figura daquele que trabalha com a criação e denominando-os “gênios”. Segundo Foucault, a concepção de loucura se transformou no decorrer do tempo, com fortes influências de crenças, costumes, rituais religiosos e políticos ao passar das décadas. Em “A loucura em Foucault: arte e loucura, loucura e desrazão” os pesquisadores Guilherme Gonzaga Duarte Providello e Silvio Yasui afirmam que:


Para ele, importa o que é entendido como “o louco”, o que as diferentes sensibilidades em relação à loucura podem fazer para alterar a situação dessa exclusão. Em sua análise das tecnologias de exclusão da loucura, o pensador se concentra em uma questão muito importante: para ele, a loucura se caracteriza estritamente pela forma como a sociedade experimenta, vivencia essa relação com a loucura. Ele recusa qualquer ação do saber sobre a loucura, qualquer patologização ou conceituação, preocupando-se principalmente com a lógica da exclusão do louco, com as tecnologias que o retiram da sociedade. Foucault não fala o que é a loucura, entretanto, fala da loucura. (Providello e Yasui, 2013)

Mas a verdade é que existe um estigma do ser louco. Seja na antiguidade, onde era visto como alguém possuído pelo demônio; em Esparta, onde se lançavam crianças com deficiências de precipícios; na Roma Antiga, onde nobres e plebeus tinham permissão de sacrificar filhos que nasciam com deficiência. No Renascimento, a “nave dos loucos” era uma prática social em que se retiravam essas pessoas de centros urbanos e as embarcavam para navegar sem rumo, a fim de que a água purificasse esses corpos. Ou seja, ainda nos dias atuais, esse estigma do louco vai além da origem da palavra ou da origem psiquiátrica e se torna um adjetivo banalizado a partir da frase “Quem não tem sua loucura?”.


Trago novamente a publicação de Vit em sua rede social sobre a obra, onde ele afirma que:

ao trazer essas palavras em fluxo visual, a obra torna-se uma expressão coletiva, um mosaico de sentidos, no qual a loucura não pode ser reduzida a uma única perspectiva. Ela transita entre extremos e carrega em si tanto a dor do confinamento quanto a beleza da invenção. É nesse espaço de oscilação que se abre a possibilidade de repensá-la não como desvio ou romantização simplista, mas como dimensão complexa da experiência humana. (Post de Vit Leão no instagram)

Entretanto, ao apresentar o “mosaico de sentidos” citado pelo artista, é evidente que, pelo menos a maioria dessas interpretações, irá reforçar o estigma de que a neurodiversidade é algo facilmente resolvido e 'curável', banalizando a temática que foi proposta pelo criador da obra. O mesmo ocorre quando se usam palavras como “mania”, um sintoma constante em diversos diagnósticos. Um sentimento único, mas que não vive isolado; ele está acompanhado de uma vivência marginalizada e profunda de algumas pessoas. Essas experiências não podem ser vivenciadas por qualquer um, são de caráter específico de certos diagnósticos e histórias.


Acho importante considerar a pluralidade de pessoas e interpretações, uma vez que este texto provém exatamente de uma experiência pessoal e artística. Entretanto, ao conversar com outros artistas e pesquisadores de áreas como Museologia, História, Filosofia e Terapia Ocupacional, percebo que não estou sozinho em meu incômodo, mas que ele é acompanhado por diversos outros que também possuem vivências dentro da neurodiversidade.


Em meio a todas essas reflexões, volto à tarde do dia 16 de outubro, onde sinto que não consigo respirar, mas que é preciso pelo menos tentar, pela pesquisa, pela arte. Deparo-me com o outdoor e o meu corpo fica gélido. Leio a frase “cada um tem sua loucura” e lembro que dois dias antes eu estava na cama, com o olhar perdido, deixando os piores pensamentos virem à tona; quando, pela milésima vez — e não foi a última, nem será uma das últimas — pensei em suicídio. Uma lágrima escorre. Duas, três.  Pergunto-me várias vezes se toda a pesquisa e todo o trabalho que venho desenvolvendo são em vão, já que todo mundo se sente assim… Mas todo mundo sente do mesmo jeito? Com a mesma intensidade? Levo esses questionamentos para o ateliê, converso em sala de aula, até porque arte é debate… Mas não me sinto de fato saciado, preciso dialogar cada vez mais, trazer fricções a estes assuntos para que cada vez mais pessoas como eu possam produzir — arte, pesquisa, ou simplesmente ter a escolha de não fazer nada… A ESCOLHA.


Mais uma vez, reforço que este texto busca abrir o diálogo quantas vezes for possível sobre arte, neurodiversidade e saúde mental no geral. Essa temática é subjetiva, suas nuances são infinitas. Reforço também a necessidade de mais artistas escreverem críticas e reflexões de arte, enquanto artistas e pesquisadores na área.







COSTA JÚNIOR, F. da.; MEDEIROS, M. Alguns conceitos de loucura entre a psiquiatria e a saúde mental: diálogos entre os opostos. Psicologia USP, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 57-82, jan./mar. 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642007000100004.


FONSECA, T. M. G. et al. Espaços heterotópicos, imagens sobrepostas: encontros entre arte, loucura e memória. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 29, n. 2, p. 406–415, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-98932009000200015.


GAI, D. G.; MATOS, A. M. C. Arte relacional inclusiva (por uma escrita com a deficiência e a loucura). Revista Digital do LAV, Santa Maria, v. 15, p. 1–14, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/68459.


PROVIDELLO, G. G. D.; YASUI, S. A loucura em Foucault: arte e loucura, loucura e desrazão. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 1515-1529, out.-dez. 2013.


TRIGINELLI, Syl. O sentir e o fazer: A neurodiversidade na gravura contemporânea. 2025. 65 f. TCC (Bacharelado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2025. Disponível em: https://www.syltriginelli.com/post/o-sentir-e-o-fazer-a-neurodiversidade-na-gravura-contemporânea.



 
 
 

1 comentário


saza39393
há um dia

Crítica extremamente necessária e bem articulada! Conversar e debater sobre estes assuntos é mais que urgente.

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